domingo, 2 de dezembro de 2007

Mercenários - A privatização da guerra - Carlos Reis




Os mercenários actuais poucas semelhanças têm com os do passado, mesmo recente. Profissionais organizados e contratados por empresas privadas, só partilham com os antigos soldados da fortuna uma característica:

aproveitam-se das necessidades de segurança em zonas de guerra e instabilidade para ganharem o mais possível.

A Convenção de Genebra de 1949, que proíbe o uso de mercenários, define-os como «pessoas recrutadas para um conflito armado por um país que não é o seu e movidas apenas pelo ganho pessoal». Os responsáveis das empresas militares privadas garantem não se envolver em combates e apenas fornecer serviços militares a Governos legítimos e reconhecidos internacionalmente. Garantias insuficientes para a relatora especial das Nações Unidas sobre o uso de mercenários, Shaista Shameen, que em Março afirmou que «a multiplicação de empresas militares privadas diluiu a eficácia das leis nacionais e internacionais». A relatora da ONU encorajou mais países membros das Nações Unidas a aderirem à Convenção Internacional Contra o Recrutamento, Uso, Financiamento e Treino de Mercenários.
No Iraque, um contingente de dez mil militares privados faz dos mercenários o segundo exército no teatro de operações, logo depois do norte-americano e à frente do britânico. Segundo o diário inglês The Guardian, a percentagem de militares contratados em território iraquiano é dez vezes superior ao que era na Guerra do Golfo, em 1991. Nessa altura, para cada militar privado havia 100 soldados do Exército, actualmente, essa relação é de um para dez.
Este investimento em mercenários é uma das tendências da guerra moderna, concebida pelos ideólogos da administração Bush. A estratégia dos neoconservadores norte-americanos procura atenuar o impacto sobre a opinião pública da morte dos seus militares e, por outro lado, baixar os custos financeiros da guerra. Mercenários nepaleses, bengalis ou latino-americanos custam menos e a sua morte provoca menos ondas.

Empresas guerreiras

A empresa Halliburton (que teve como vice-presidente Dick Cheney, ex-secretário de Defesa norte-americano) é apontada como a grande recrutadora de mercenários, visando a defesa dos interesses corporativos dos Estados Unidos no Iraque. Os salários destes «militares privados» podem ir dos 130 aos 9000 euros por mês, valor auferido quando são recrutados na América entre os ex-membros de forças paramilitares, portanto já com baptismo de fogo nas lutas internas latino-americanas. O general Rafael Samudio, presidente da Associação Colombiana de Oficiais na Reserva, orgulha-se de o seu país «ter condições de fornecer pessoal bem capaz, já que as Forças Armadas Colombianas lutam contra os rebeldes, nas montanhas e selvas, há 40 anos».
Dos 87 milhões de dólares que os Estados Unidos destinaram, em 2003, para a campanha iraquiana, a Ásia Central e o Afeganistão, um terço, ou seja, 30 mil milhões, destinaram-se ao pagamento a empresas militares privadas. Peter Singer, analista da Brookings Institution e autor do livro Corporate Warriors (Guerreiros das Corporações), calcula que as empresas militares privadas movam em todo o mundo cerca de 100 mil milhões de dólares. Um estudo, realizado em 2002 pelo International Consortium of Investigative Journalists, identificou 90 empresas militares privadas, quase todas norte-americanas, britânicas ou sul-africanas, que estariam a operar em 110 países.

Privatização da paz?

À semelhança da administração norte-americana, também o Governo britânico estuda a contratação de mercenários, desta feita para missões de paz. Um documento recente, preparado para o Ministério das Relações Exteriores, afirma que empresas privadas de boa reputação podem ser capazes de realizar missões de paz de uma forma mais eficiente do que os capacetes azuis da ONU. O ministro da pasta, Jack Straw, escreve no prefácio do estudo que «um sector militar privado forte pode ajudar as Nações Unidas a responder a crises com maior rapidez e eficiência».
O documento afirma ainda que, com as mudanças que estão a ocorrer, a prestação de serviços militares por empresas privadas é uma actividade que tende a crescer. Por esse motivo, os autores dizem ser desejável tentar distinguir entre as várias empresas do sector. Como exemplo, o estudo aponta que algumas empresas privadas, quando actuam em África, demonstram mais respeito pelos direitos humanos do que os próprios Governos nacionais. «O mundo actual é muito diferente do dos anos 60, quando a actividade militar privada se caracterizava pela intervenção de mercenários, de um tipo difícil de aceitar, nos conflitos coloniais e pós-coloniais», afirma Jack Straw.
Mas o parlamentar Andrew Mackinlay qualificou a ideia de «repugnante», por considerar que a contratação de mercenários para integrar as forças de manutenção da paz representaria «uma abdicação das responsabilidades dos Governos e das agências que defendem os elevados ideais da ONU». O analista Peter Singer afirma que, pela primeira vez na história do moderno Estado-nação, os governos estão a ceder aquele que é um dos principais atributos do próprio Estado: o monopólio sobre o uso legítimo da força.

O castigo de Thatcher

A acção das empresas de segurança e planeamento operacional decorre num verdadeiro vácuo jurídico, embora formalmente seja enquadrada pela Convenção de Genebra, de 1949. Os mercenários têm treino, armas e actuam frequentemente em instalações militares, o que implica envolvimento directo no conflito. Já as empresas especializadas escondem-se habitualmente numa rede fantasma, com múltiplas conexões, empresas subsidiárias, filiais e subcontratações.
Muitos dos profissionais contratados cometem atentados contra os direitos humanos, ou são deles vítimas pelas condições em que foram levados a envolver-se no conflito. Mas se os há, torna-se difícil saber a quem pedir responsabilidades – se ao país de alistamento, ao país da empresa contratante, à cadeia de comando militar ou ao país hospedeiro.
Com o recrutamento destes soldados corporativos a ser feita entre paramilitares ou guerrilheiros, grupos definidos como terroristas, Adam Isaacson, do Center for International Policy, alerta que «se recruta ex-terroristas para proteger pessoas e bens contra terroristas». Pode também acontecer que estes combatentes a soldo participem em conflitos condenados pelos seus países.
Os incidentes com mercenários sucedem-se. Um dos mais embaraçosos ocorreu em Março do ano passado, com as autoridades do Zimbabué a deterem 70 mercenários que, alegadamente, se preparavam para participar num golpe de Estado na Guiné Equatorial. Envolvido na operação, Mark Thatcher, filho da ex-primeira-ministra britânica, foi condenado a quatro anos de prisão por ter violado a lei que proíbe qualquer participação em actividades mercenárias e por financiamento de um golpe de Estado contra o presidente Teodoro Mbasogo. Na altura, o Conselho Executivo da União Africana pediu à Comissão da UA que tomasse «todas as medidas necessárias com vista a achar uma solução global para o fenómeno do mercenarismo no continente». Iniciativa privada para alimentar ainda mais guerras? Como se à África não lhe chegasse e sobrasse os combatentes «oficiais» que as fomentam um pouco por todo o lado.

Ofício milenar
O antigo Egipto (3100 a. C.-232 a. C.) já utilizava mercenários líbios para guardar as suas fronteiras. Da mesma forma, na Grécia antiga (1550 a. C.-529 a. C.) inúmeros combatentes estrangeiros incorporavam-se nos exércitos das cidades, enquanto os próprios gregos prestavam serviços ao império persa. Cartago testemunhou uma terrível revolta dos seus mercenários (241 a. C.-238 a. C.). Com a Revolução Francesa (1789) considera-se que cada cidadão deve lutar pela sua pátria e que é desonroso servir outro país. É o princípio do declínio dos soldados de aluguer.
Somente na segunda metade do século XX, após o fim dos impérios coloniais em África, os mercenários reaparecem em pleno nos campos de batalha. Nos anos 90, a intensificação das actividades mercenárias em todos os continentes é, em parte, um efeito do aumento no mercado da oferta de «mão-de-obra», libertada pelo fim da Guerra Fria e do regime do apartheid. Trata-se de uma reconversão dos ex-soldados do Pacto de Varsóvia e da África do Sul que, hoje, vendem os seus serviços a multinacionais.


http://www.combonianos.pt/htmls/EEyEFFAlklyGLwCAbC.shtml

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